Por Márcia Tominaga
Márcia conta como ela e seu marido reagiram ao descobrirem que iam ter um filho anencéfalo. É apresentada a carta que eles escreveram aos pais de crianças anencéfalas.
Retornando ao Brasil, depois de ter participado da Canonização de São Josemaria Escrivá, ainda no mês de outubro de 2002, descobri com grande alegria que estava grávida. Porém, ao realizar um exame de rotina, descobriu-se que o bebê possuía uma anomalia grave, a acrania, que em pouco tempo estaria caracterizada como um caso típico de anencefalia, com perspectiva de pouco tempo de vida após o parto. Embora alguns sugerissem o contrário, para nós não houve a menor sombra de dúvida do caminho a seguir: a gestação foi adiante, e nosso filho Felipe nasceu em junho de 2003.
No ano seguinte, em função de uma ação ajuizada no Supremo Tribunal Federal, surgiram muitas discussões sobre o aborto e a anencefalia nos meios de comunicação.
Embora a tendência natural fosse preservar a intimidade da família, considerando a gravidade da questão e os vários erros que estavam sendo divulgados, julgamos que seria um dever agirmos de acordo com dois grandes ensinamentos de São Josemaria: o amor à liberdade pessoal e o amor à verdade. Deste modo, participamos de entrevistas em rádios e em programas de televisão e ajudei meu marido a escrever artigos para jornais e revistas.
Márcia Tominaga – Brasília/DF
A seguir trechos de uma carta de Márcia e seu esposo dirigida aos pais de crianças anencéfalas. Dois comentários de Márcia foram incluídos no texto original da carta, entre parênteses.
Brasília, 17 de julho de 2004
“ [...] nós tivemos um filho, que não era, nem viria a ser, como costumam ser mostradas as crianças nos filmes e nas propagandas de TV. Também não era como nós imaginávamos que deveria ser. Mas era perfeito.
Isso pode parecer um absurdo. Só que não é. Com o tempo, fomos descobrindo que a natureza é muito mais sábia do que nós. Após um primeiro momento de surpresa e dor, aprendemos a querer bem aquela criança, exatamente como ela era. Aquela criança que estava dentro da barriga da mamãe, e que provavelmente somente teria a experiência de vida sob este ângulo. Não conheceria o mundo do lado de fora, como nós conhecemos, e não teria a oportunidade de experimentar tantas coisas que, julgávamos, seria essencial para a realização de qualquer ser humano.
De fato, assim ocorreu, e, vinte minutos após o parto – um parto normal, sem qualquer complicação – a vida de nosso filho, entre nós, terminou.
(Como somos católicos, foi batizado na sala de parto, pelo próprio médico)
E então, se ele não pode experimentar nada do que, em geral, se deseja experimentar nesta vida, se não pode apreciar o sabor de um bom prato de comida, nem se divertir em um parquinho, nem crescer e andar de bicicleta, conhecer o mar, namorar, casar, envelhecer... então, que sentido teve esta gravidez – aliás, mais precisamente, que sentido teve a existência desta criança? Talvez, exatamente o mesmo sentido da nossa. Ou alguém pensa seriamente que existimos para comer, ou, de qualquer forma, para sentir prazer, ou para acumular experiências? Não, no fundo de nosso coração, sabemos que não é isso. Podemos não conseguir desvendar exatamente por que existimos, para quê estamos vivos. Mas é óbvio que é para algo maior.
A vida não é apenas para ser “curtida”: é para ser venerada, respeitada, contemplada. Cada vida humana é única, e, se não sabemos seu sentido, ao menos vislumbramos que tenha algum, que cada pessoa deve buscar por conta própria. Não conhecer a missão de uma pessoa neste mundo não significa que ela não a tenha. Simplesmente, revela que nós somos limitados, e não podemos compreender tudo. Em relação a muitas coisas, apenas podemos contemplar, e tentar aprender com os fatos da vida.
Felipe, nosso filho, tinha uma missão. Diferente da nossa, diferente da missão dos filhos de nossos amigos. E a realizou durante sua vida – aos nossos olhos dura – dentro da barriga da mãe; e a realizou também, por alguns minutos, ao nosso lado. Não compreendemos muitas coisas (embora, hoje, alguns pontos comecem a fazer sentido). Apenas sabemos que ele faleceu, deixando-nos, e que é muito bom, quando sentimos saudades, poder ir ao local onde está sepultado e fazer nossas orações.
Cabe, aqui, abrirmos um parêntese. Sabemos que, se a vida fosse apenas isto que tocamos, reduzindo tudo à matéria, esta ação de orar seria ridícula. Só que ridículo seria viver, se assim fosse! O homem pode ser uma incógnita: mas com certeza, é uma incógnita que transcende à pura matéria.
Com nosso filho – perfeito, para a missão a qual tinha que cumprir neste mundo – aprendemos a amar mais seu irmão mais velho, que hoje tem três anos. Aprendemos a crescer no amor mútuo, muito mais, e a receber com imenso carinho, há pouco mais de um mês, a seu irmão mais novo, que nasceu com muita saúde no dia nove de junho.
Em relação ao filho anencéfalo, embora sua vida possa terminar em breve, enquanto seu coração estiver batendo, estamos convictos de que estará lutando para cumprir sua missão. Dói a qualquer pai e a qualquer mãe não poder ajudar seu filho. E, nesta situação concreta, temos experiência de que esta dor é intensa. Mas daí a querer desrespeitar a existência do próprio filho, a diferença é monumental. Será que, após alguns anos, será fácil conviver com a lembrança de se ter agido desta forma? Porque ninguém pode esquecer um filho, por mais breve ou incompreensível que tenha sido sua vida...
[...] perdoem-nos os cientistas, mas, pela nossa experiência, é completamente absurdo “apoiar” uma mãe que, ao saber que seu filho é – ou virá a ser – anencéfalo, cogite eliminar esta frágil existência. Tão absurdo como auxiliá-la a cometer suicídio, se assim ela solicitasse. Não, nem se pode ajudá-la a se matar, nem a matar sua criança. Nos dois casos, é gritante a mensagem: a mãe está pedindo ajuda!
Nós lembramos com freqüência do Felipe. E ficamos felizes com isso. Já tínhamos ouvido dizer que, quando se descobre que um filho tem qualquer anormalidade mental, a princípio se sofre muito, mas com o passar do tempo, se descobre que este filho – que dá bastante trabalho... – é o que se ama de forma mais especial. Hoje, sem deixar de termos muitíssimo carinho pelos dois pequenos rapazes de nossa casa, é com estranha leveza que descobrimos que o mesmo se aplica no caso do Felipe.
Não é razoável buscar compreender aquilo que não podemos compreender. Mas é sempre possível contemplar o mistério da vida, e venerá-la, e respeitá-la, por mais contrária que seja aos nossos interesses pessoais. Afinal, um filho não pode ser concebido apenas para satisfazer aos sonhos ou caprichos dos pais: nós é que devemos saber sacrificarmo-nos para dar-lhe condições de cumprir bem sua missão. Seja ela qual for.
Mães, não se deixem enganar! Pais, sejam valentes! Sabemos que há momentos em que se precisa de ajuda. Quando chegar esta hora, lembrem-se de nós. Lembrem-se do Felipe. E lembrem-se de seu irmão caçula, que hoje chora forte como qualquer criança que tenha um mês de vida, que mama muito, e que sorri. Se hoje este caçula existe, podem ter certeza de que foi graças à conclusão natural da gravidez anterior, sem qualquer tipo de intervenção para eliminar a vida do Felipe.
Passar por esta experiência exige sacrifício. Amar exige sacrifício. Mas garantimos que não deixa qualquer tipo de trauma. Se ainda houver uma sombra de dúvida, tentem conversar um pouco com pessoas que tenham realizado um aborto, ou que tenham tentado seriamente realizá-lo. Depois, procurem por nós, e tirem suas próprias conclusões. Será um prazer podermos conversar pessoalmente. Na esperança de que tenhamos conseguido ajudar, aqui nos despedimos.”
(Hoje, por intercessão de São Josemaria, temos um filho santo, que do Céu cuida de nossa família).
Márcia Tominaga
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