Revista Época
As 7 da manhã, o portão é aberto e as crianças da 1ª à 4ª série entram na escola. Depois do chocolate quente, sentam-se em filas, no pátio. Uma professora pára na frente da turma e pergunta:
– O que fazemos de gostoso todas as manhãs?
– Acolhimento! – gritam, em coro, os cerca de 300 alunos.
– Então, todo mundo de mãozinha para cima.
Basta a professora puxar, “Pai-Nosso que estais no céu...”, e a turma toda acompanha. De olhos fechados, as crianças rezam o Pai-Nosso sem dificuldade, algumas com as palmas das mãos juntas na altura do peito, outras com as mãos abertas e para o alto. Depois de entoar duas orações e uma música sobre o amor, sobem enfileiradas para a sala de aula. “Quando cheguei a esta escola, elas tinham um comportamento muito violento, que traziam de casa”, diz a diretora Patrícia Bonilha. A solução foi o “acolhimento” no início de cada turno. “Melhorou muito. Ele proporciona equilíbrio, você consegue aquietar o ambiente, principalmente no período da tarde, quando as crianças chegam cheias de adrenalina”.
A cena lembra um ritual tradicional de qualquer colégio católico. Mas ocorreu na escola municipal Walter Carretero, de Sorocaba, interior de São Paulo. Na rede da cidade, todas as escolas incluíram trechos da Bíblia em seu material didático em 2002, com a adoção da cartilha Deus na Escola, produzida pela Secretaria Municipal de Educação com a participação de várias entidades religiosas. “Percebemos uma mudança de comportamento nos alunos de toda a cidade. No modo como tratam os professores, a família e os amigos”, diz a advogada Maria Lúcia Amary. Ela foi uma das autoras do programa, que dá orientações sobre como as escolas devem trabalhar os valores cristãos nas disciplinas escolares.
A transmissão de valores é um dos principais argumentos para a inclusão do ensino religioso nas escolas. Seus defensores consideram que a espiritualidade é um conhecimento fundamental para o desenvolvimento. “Em tempos de violência e degradação familiar, a escola deve ser um espaço para a construção do indivíduo”, afirma Maria Lúcia. “Na formação do caráter de uma pessoa, ficam faltando valores fundamentais de vida e respeito se ela não tem uma religião.”
Nem todos concordam com essa linha. Para a educadora Roseli Fischmann, professora da Universidade de São Paulo (USP), a escola deve ser capaz de ensinar o respeito mútuo sem depender da religião. “Na cabeça da criança, as noções de ética, direito e respeito não podem estar vinculadas a um Deus. Senão, o que vai acontecer se ela brigar com um colega que tem um Deus diferente do dela? Ou se, um dia, questionar sua religião?” Roseli faz parte de um grupo de educadores e sociólogos que evoca o princípio do Estado laico (sem religião) para criticar a entrada da fé nas escolas públicas. Para ela, cabe à família decidir se quer ou não transmitir sua religiosidade ao filho. “A espiritualidade não é parte necessária da formação escolar. Eu dei educação religiosa para meus filhos, mas há pais que não querem isso e eles têm esse direito”.
Há, portanto, duas correntes de pensamento antagônicas, cada uma com fortes argumentos. Será possível conciliá-las? Segundo o último censo do IBGE, 93% dos brasileiros se dizem religiosos. É provável que boa parte deles se sinta contente com a ajuda da escola na transmissão de seus valores aos filhos. Mas aí começam as dificuldades. De acordo com o IBGE, os brasileiros se dividem em 43 denominações religiosas. Os católicos representam 74% da população, seguidos pelos evangélicos, com 15%. Os que não têm religião são 7% do total – mais que o dobro da fatia que representa os adeptos de outras crenças, 3%. Como trazer Deus para as salas de aula de forma respeitosa a todas as linhas religiosas – incluindo os ateus e agnósticos?
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